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2010-05-25

O caminhante silencioso


Eu não gosto das coisas que vejo. Eu vejo coisas que as pessoas simplesmente não gostariam de ver. Algumas são simplesmente inexplicáveis, outras estão além da minha capacidade de expressão. Todas elas, no entanto, não deveriam ser vistas. Pelo menos não no nosso mundo.


A linguagem humana está além de meu alcance. Eu trocaria de boa vontade por uma linguagem mais poderosa e uma ignorância abençoada em lugar de ver e saber as coisas que vejo e sei. Só há uma coisa mais assustadora do que as coisas que não deviam estar aqui e estão: os humanos que são capazes de perceber tais coisas.
Meu tipo é uma dos mais ágeis e silenciosos que existem entre os mamíferos. Minha estirpe evoluiu em direções que não deveria através dos milênios. Eu particularmente culpo os humanos... Tenho certeza que foram os humanos que veem o que não deveria estar aqui que nos despertaram e nos mostraram essas coisas.
Nós não compartilhamos todas as emoções humanas. Mas o medo é algo que está presente em todos os mamíferos, então estamos sujeitos a ele. E alguns se perguntam por que somos criaturas tão assustadiças.
Sim... Vocês nos veem. Vocês nos ignoram. Nos ignoram entre os becos. Mesmo quando olhamos fixamente para vocês. Pensam que passar tanto tempo entre roedores nos faz estúpidos. Claro que existem aqueles entre nós que não despertaram. Que apesar de talvez verem as mesmas coisas não as entendam da mesma maneira. Mas há ignorantes e despertos entre todas as espécies.
Eu ando silenciosamente pelo beco. Ouço passos. Eu sei que ele é um daqueles. A palavra me foge. Nunca, na verdade, foi criada entre meu tipo. Os humanos não entendem a benção das próprias línguas. Tantas, tão completas!
Eu sei que ele é um deles. Um tipo especial entre aqueles incomuns. Talvez incomum seja o melhor que possa dizer. Ele é especial como um daquele tipo dentre os comuns. Um daqueles que carregam armas. Que andam em veículos barulhentos. Se vestem iguais, de azul. Mas os especiais entre os incomuns, esses homens se vestem de preto.
Sei que ele um dos incomuns não porque ele não evita meu escrutínio como também olha fixamente para a coisa a frente. A criatura, que tenta escapar ao lugar de existência dela e vir ao mundo dos humanos.
O homem de preto aguarda. Não há nada que ele possa fazer além de observar a criatura esgueirando-se para nosso mundo. Ele apanha um parafuso do chão. A criatura escapa ao que quer que ela estivesse presa. Mas o instante de euforia ao pisar no nosso mundo é a perda de atenção que a condena. O homem de preto gira o parafuso entre os dedos. Ele cresce, muda, molda-se grande e afiado. A criatura nem sabe o que a atingiu quando a haste de metal transpassa seu corpo.
Ele é bom. Bom como nunca vi, mesmo tendo visto tão poucos. Duvido que mesmo que um comum estivesse olhando diretamente para ele não teria visto a mudança do pequeno objeto, não teria visto a criatura, não teria visto o homem de preto transpassar a criatura com a peça metálica. A criatura está morta. O homem ainda segura a haste. Num piscar de olhos ela volta a forma de parafuso se desprendendo da criatura e caindo no aperto da mão do sujeito. Ele simplesmente larga o parafuso no chão. Um vestígio invisível para aquilo que aconteceu ali.
Nunca vi eles enterrarem uma daquelas coisas no nosso mundo. Não sei para onde elas são levadas. Espero para que o lugar de onde elas escaparam. Não sei como contar como ele fez para embrulhar a criatura, mas num momento ela estava fora, no outro estava dentro de um enorme saco. O sujeito arrasta a criatura.
Me espreguiço como faço centenas de vezes ao dia. Não porque estou cansado, mas porque isso me torna flexível e ágil. É pura sobrevivência. O sujeito de preto passa mancando por mim. Eu solto o miado mais sugestivo que posso, mas não passa disso. O estranho de preto me dá o olhar mais significativo que ele pode dar em resposta enquanto leva os restos da criatura para longe.
Olho para o céu escuro da noite. Sempre achei que aquelas criaturas vinham de tão longe quanto aquelas luzes brilhantes. Talvez os incomuns que as cacem as levem para serem enterradas ainda mais longe. Os passos do homem de preto desapareceram junto com ele e sua carga assustadora.
Eu continuo meu caminho. Silenciosamente espreitando entre vãos, acima e abaixo da cidade. Sou solenemente ignorado pelos humanos até encontrar aqueles que me alimentam. Sou quase tão silencioso e invisível quanto as coisas que vejo e não gostaria de ver. As coisas que aqueles homens de preto matam.
Mas o que me assusta mais que as outras coisas. Mais do que as criaturas que eles caçam, mais do que alguns deles. O que me assusta mais do que quando elas aparecem sem nenhum deles vir a caça, mais do que ver elas seguindo humanos. O que mais me assusta é quando uma delas mata um dos homens de preto. Isso é uma cena assustadora, que mesmo que pudesse não colocaria em palavras. É quando testemunho isso que me resigno a ser um observador silencioso das coisas que não deveriam estar aqui. Eu vou embora com algo ainda mais assustador apenas na margem de minhas idéias: quando dois daqueles incomuns se caçam...

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