A peça de metal subiu, cruzou a atmosfera e despedaçou o aparelho. Odeio ser espionado. As pessoas precisam aprender isso. Não sei exatamente como consigo saber que estou sendo observado, mas definitivamente não gosto. Detesto tanto que passo horas procurando o intrometido. Mesmo conseguindo enxergar satélites no céu, o menor movimento dos olhos me faz visualizar quilômetros de distância. Mesmo os menores ângulos implicam grandes distâncias.
Eu fico pensando o que ficam pensando os observadores desses satélites quando eu olho de volta e momentos depois o aparelho está em pedaços.
Nunca gostei de esportes, mas acho que arremesso ao satélite está me conquistando. Sempre fui alto, magricela e desajeitado. Quando era criança não conseguia submeter uma bola a minha vontade nem para salvar minha vida.
Mas a puberdade me deu uma coordenação motora sobrenatural. Foram diversas alterações sobrenaturais. Minha força parece impossível. Já recebi tiros de canhão a queima roupa e escapei para revidar. Consigo me mover mais rápido do que seus olhos podem acompanhar. Já saltei de aviões sem para-quedas e escapei.
Eu consigo arremessar uma pedra para fora da atmosfera. Isso requer um tanto de habilidade. O caso é que a atmosfera é uma grande adversária. A maioria das pedras que arremessei simplesmente se despedaçava contra o atrito. Hoje arremesso placas de metal retorcido em volta dessa mensagem.
Meu nome é Dred se você está lendo isso, você é um astronauta na estúpida missão de entender porque um satélite parou de funcionar durante a vigilância ao super-vigilante na Africa.
Parei de escrever mensagem e a rasguei. Provavelmente ela se incineraria, nunca abririam o projétil ou ela iria parar muito depois de estraçalhar o alvo. Amassei a peça de metal e deixei ela do tamanho de uma bola de golfe.
Olhei novamente para o satélite e arremessei o projétil. Ela brilhou escarlate enquanto esquentava contra o atrito da gravidade. Me concentrei e o mundo desacelerou no momento em que meu dardo se chocava contra o aparelho espião. Em câmera lenta vi a esfera de metal incandescente criar um buraco através do satélite e as partes se separarem de forma explosiva.
O projétil se moveu pra muito longe. Não ia ter adiantado ter colocado a mensagem dentro. Os escombros flutuantes nunca vão cair no planeta, e se forem a gravidade vai pulverizar os destroços antes deles atingirem o solo.
Aposto que Scot e Nadia não precisam se preocupar com satélites espiões. Mas os dois voam... Eu poderia me mover mais rápido do que eles poderiam me achar, mas o mundo seria absurdamente chato.
A minha volta está uma erma paisagem africana. Não tenho a menor idéia de onde estou. Há cinco dias que não escuto ninguém falar inglês. Um agricultor me observa ao longe, temeroso demais para se aproximar. Talvez eu lembre a ele histórias antigas sobre demônios fazendo coisas sobre-humanas.
Melhor seguir em frente. Se continuar andando cedo ou tarde os problemas vão me encontrar. A noite chega com uma lua brilhante. Somente as estrelas já seriam suficiente para tornar claro o cenário que me envolve. Ele poderia até parecer silencioso. Os predadores querem assim, mas eu consigo ouvir o bater dos corações dos pássaros que dormem ao longe.
Nessas horas em que não estou despedaçando armas, amarrando assassinos, detonando minas, me vem as lembranças das coisas humanas que não sinto mais. Não sinto frio. Não sinto calor nem sob o escaldante Sol da savana. Nem quando cruzei o Saara senti calor ou frio. Não me lembro qual foi a ultima vez que suei. Não lembro quando foi a derradeira vez que comi. Lembro que foi com uma família. Eles só tinham uma pasta estranha para comer. Comemos com a mão. Eu comi apenas para partilhar, mas a alegria estava em partilhar. Nem lembro quando senti fome. Mas hoje como todos os dias, vou me forçar a dormir, para manter algo de humano.
Já que não me canso não é muito simples saber quanto andei. Há um acampamento a frente. Talvez uma centena de famílias. Água deve estar longe. Provavelmente ninguém fala uma linha de inglês. Eu definitivamente tenho de passar algum tempo em algum lugar aprendendo o mínimo. Como posso ajudar esse povo se nem sei o que eles falam?
A resposta chega junto com o caminhão que para nas imediações. Apuro meu foco e noto que há homens com tacapes e facões cercando o campo. Um homem desce do caminhão. Típico estrangeiro. Algo de siciliano, eu diria. Ele abre o caminhão. Alguns dos homens armados se aproximam. Algumas crianças chegam carregando sacos. Milho, feijão. São sacos de comida. O homem descarrega uma caixa de madeira e a abre: fuzis.
É um comércio escabroso. Aquele acampamento provavelmente tem sido alimentado por ajuda humanitária. Os homens estão trocando a comida por armas. Esse continente está além de qualquer ajuda...
Mas não há motivos para me parar de tentar. Surjo do lado deles como uma assombração. O estrondo da barreira do som sendo rompida chega logo após. Poderiam imaginar que surgi junto com um trovão.
O motorista deve falar inglês. Não queria que a primeira palavra em inglês que trocasse fosse aquilo, mas não sei quem é pior: os que desistem dos alimentos por armas ou os que provem aquelas armas.
– Você – eu aponto para o motorista – Não sei qual é o trato, mas está cancelado. Eu vou descarregar o caminhão...
Depois de minha aparição alguns se jogaram no chão, outros fugiram. Tenho certeza que o motorista não acompanhou uma palavra do que eu disse, ele sacou um revolver e atirou. Quando minha percepção atinge a velocidade necessária para acompanhar a bala, ela está diante de meus olhos. Tento apanhá-la antes dela se deformar contra meu rosto. Sinto o impacto, e só recupero a bala semi-intacta.
Desacelero para ver o mundo a volta. Eu com uma bala entre os dedos. O motorista grita. Crianças correm desesperadas. As pessoas que vieram observar a negociação fogem e se escondem. O provável siciliano nem sente eu arrancar a arma das mãos dele. Antes que ele sequer note já transformei o instrumento numa massa deformada do tamanho de uma bola de tênis.
O agarro e espero os segundos passarem para a adrenalina ceder. O coração dele bate de modo estranho pelo que escuto. Espero que ele não resolva morrer. Arrasto o sujeito para longe enquanto puxo o caminhão junto. Deixo os sacos de alimento para trás. Alguns já fogem do acampamento.
Aquela demonstração de força deve ser apavorante para eles. Indago ao sujeito qual era o acordo e digo que ele vai ficar com o caminhão, mas vou destruir todas as armas. O sujeito leva algum tempo até lembrar que fala inglês. Pelo menos ele não morreu. Ele não é italiano, na verdade é africano de pais imigrantes espanhóis.
O motorista me conta que aquelas pessoas estão sendo ameaçadas por um outro grupo, que inclusive destruiu as aldeias deles, centenas morreram. Por isso eles se refugiaram naquele acampamento. Quando as ameaças chegaram aos acampamentos os europeus partiram.
– Eles não tinham opção – o motorista fala com um inglês horrível.
Queria nunca ter visto situação semelhante. Mas a memória de minha escolha ainda arde na minha cabeça. Uma vila estava sendo ameaçada. O contrabandista me disse que por isso eles estavam desistindo de tanto da colheita para trocar por armas. Deixei eles fazerem a troca. Depois de espantarem os invasores, aquele mesmo grupo se voltou contra outros e fez um massacre. Pelo menos aprendi minha lição: não escolha lados.
– O caminhão pode ir – eu disse – As armas já eram...
Já tinha visto muitas batalhas naquele continente. As armas do falso italiano eram velhas e horríveis. Mas não importava quem tivesse as melhores armas: ia ser um banho de sangue e eu não ia cometer o mesmo erro duas vezes. Mandei o motorista avisar que ia destruir as armas e que ia fazer o mesmo com as dos agressores.
As armas e munição arderam e explodiram. Alguns me olhavam enquanto pequenas explosões povoavam a fogueira que ascendi. São olhos cheios de medo, de dúvida. Eu seria a resposta a suas preces? Seria um demônio? Ou seria apenas mais um para os explorar? O dia segue. Ninguém se aproxima. Mantenho-me erguido olhando para o longe. Não vejo nada, deixo que minha audição pinte o cenário a minha volta.
Pessoas conversando. Um tom estranho. Animais, vento, insetos. Ouço a voz do motorista. Uma voz feminina, dois corações jovens batendo acelerado, um soluço infantil. A porta do caminhão se abre. Olho para o veículo. A porta já se fecha, no veículo que parte. Duas meninas na boleia junto com o motorista, não mais que doze anos cada. Não consigo ouvir meu próprio suspiro e já estou diante do caminhão. O motorista breca assutado com minha segunda aparição.
Arranco a porta dele e o retiro do veículo. Ele está assustado novamente, mas parece entender que não vou matá-lo. Isso ajuda tanto que só preciso mandar três vezes ele dizer para as meninas voltarem para casa. Elas se mantém paradas.
– Qual é o problema? – indago ao motorista.
– Elas perderam os pais – o motorista fala no seu inglês insuportável – O tio delas as estuprou e a esposa dele as vendeu para mim.
– Pra onde ia levá-las?
– Pra um prostíbulo...
Mais uma batalha perdida. O que eu poderia fazer para ajudar aquelas meninas? Deveria haver mais crianças naquela situação no acampamento. Meu coração dá uma pulsada no ritmo além do habitual. Sinal de raiva. Não posso sentir raiva, não posso perder o controle. Mais uma batalha perdida. Mas nunca posso perder o controle... Haveria consequências.
Sinto a bala se deformar nas minhas costas. O impacto é violento, me tira o equilíbrio. Outros tiros. Eu deveria ter percebido, eu poderia ter percebido, mas concentrado em controlar minha raiva os invasores chegaram atirando. O motorista também foi alvejado. Morto instantaneamente.
Ergo-me e avanço contra os três veículos que chegam. Uma dúzia de homens, na verdade homens e crianças, atirando para matar, sem escolher vítimas. Os jipes param no meio do acampamento. Como pude perder tanto tempo? Derrubo e desarmo todos do primeiro antes deles saberem que estou ali. Viro o segundo. O terceiro tem uma metralhadora montada no chassi e o artilheiro não hesita, dispara contra mim. O calibre elevando me leva ao chão. Ele continua atirando por mais do que seria necessário. Os homens do jipe que virei se erguem celebrando.
A expressão de horror que se emoldura nos rostos deles quando me levanto é medonha. Minha roupa já era paupérrima, estava em farrapos. Ouço uma explosão do lado de fora do acampamento. O caminhão com as duas meninas explodiu. Ouço os gritos delas. As balas devem ter acertado o sistema de combustível.
Nova desatenção, novo disparo. Mas tenho tempo suficiente para acelerar minha percepção. A bala ainda não saiu da metralhadora do jipe. Nem sairia, o disparo vem de um dos homens no chão. Aproximo-me apanhando a bala que se dirigia a mim. Não posso deixar balas voarem soltas. Enterro os dedos no lado do aparato, sinto uma bala roçar meus dedos, a bala escapa rodopiando pelo buraco que abri.
Coloco o atirador no chão e apanho a bala que ainda subia, arremesso-a contra a metralhadora do jipe e me dirijo a ele. Chego antes dela e apanho os dois outros atiradores pelo colarinho, eles nem sabem que largaram as armas em vista do meu avanço. A bala que arremessei atinge a metralhadora, os tiros que o atirador disparou fazem o armamento se despedaçar depois da lesão sofrida pelo meu arremesso.
Empurro uma massa de ar e derrubo os invasores que ainda estavam de pé. Os jipes estão vazios. Naquela velocidade os sons não existem. Não ouço as crianças gritando, mas não há nada que possa fazer. Meu coração não emite nenhum pulso de raiva. É mais uma batalha perdida.
Salto e diminuo minha velocidade de percepção. Os segundos em que subo até a altura das nuvens são realmente segundos. Quando chego lá re-acelero, quero que esses instantes de solidão durem o máximo possível.
Sinto a gravidade começar a me afetar e retorno a velocidade de percepção humana, projeto minha descida para o jipe. Movo-me para ganhar tanta velocidade quanto possível. Rasgo o veículo em dois com meu impacto. O mundo alentece novamente. Apanho as duas metades e as arremesso para fora do acampamento.
O mundo volta a sua velocidade normal. Os acampados vibram, os invasores fogem desesperados. Afasto-me. Aquela não foi uma vitória, duas crianças inocentes morreram sem motivo. Meu tradutor estava morto. Perco a noção do tempo. Noto alguém se aproximando. É um garotinho correndo atrás de uma bola. Seus companheiros que corriam atrás param ao notar que ela toma minha direção.
Coloco o pé no caminho e ergo a bola com um leve toque. Nunca ia conseguir fazer aquilo na idade deles. Ela sobe a equilibro na cabeça, solto-a sobre meu peito e deixo ela rolar pelo corpo para minha outra perna fazendo ela voltar ao garoto. Ele amortece a bola no peito e pisa em cima dela. Ele ri. Comprei mais um tempo de vida para ele. Mais algum tempo para ele jogar...
Futebol. É o esporte mais popular do mundo. Apreciado por ricos e aristocratas no velho mundo mundo e por camponeses sofridos na África. Será que haveria algum modo de fazer as pessoas prestarem atenção em todas as batalhas que perdi nesse continente? Acho que não. Acho que nem ajuda humanitária. Acho que nem uma Olimpíada nesse continente mudaria o modo como encaram a África. Pelo menos esse pedaço selvagem e desumano do continente onde os humanos surgiram. Mas não importa, não há motivos para não lutar uma batalha perdida. Vou embora ouvindo a animação dos pequenos jogadores. Mas vou continuar lutando minhas batalhas perdidas, vou continuar lutando pela África. Sabendo que nem futebol, nem olimpíadas, nem ajuda humanitária, nem vigilantes com super-poderes vão mudar a África.
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