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2009-09-10

Dor, tinta e adorno


É difícil definir pra mim o que é tatuagem. É uma coisa tão pessoal que me parece quase inefável. É estranho também, afinal ainda não tenho nenhuma, mas quero ter algumas.
É uma coisa tão clara pra mim que nem entendo gente que não as acha interessante. Não é uma questão de achar bonito. Tem gente que marca o corpo com coisas feias. Então vamos começar explicando minha opinião a respeito dos argumentos contra o assunto.
“Você pode se arrepender”. Esse é clássico. Chega a ser brega. Digo duas coisas pra começar. Um: Se você não se arrepender de mais nada na vida, não vai ser de uma tatuagem que vai conseguir. Dois: Arrependimento faz parte da vida. Se não pudesse se tornar uma marca de arrependimento seria frívola como um par de brincos que se usa um dia e outro não. Não seria uma definição como realmente deve ser.
“Dói pra fazer”. Dói pra tirar também... Dói parir e tua mãe te pariu. A dor é outra coisa da natureza. É inescapável. E essa você pode escolher pelo menos o tamanho da aflição.
“As pessoas tem preconceito contra gente tatuada”. É. As pessoas tem preconceitos contra negros, mulheres, velhos, crianças, homossexuais, estrangeiros e toda sorte de característica humana. Enquanto as pessoas se reprimirem pelo preconceito ele vai imperar. O que um pouco de tinta diz sobre meu caráter? Tanto quanto a cor da minha pele, dos meus olhos, meu sexo ou orientação sexual... E olhe que essas coisas nasceram comigo. Diz tanto quanto minhas roupas... Pois elas costumam ser questão de escolha. Mas será que as pessoas não aprenderam ao longo dos milênios a esconder quem são por trás de máscaras e vestimentas? Já vi gente tatuar “orgulho gay”. Diz muito sobre o caráter da pessoa. Diz de forma direta, e ofensiva para alguns. Mas não por causa da tinta impregnada na pele, mas pela natureza da assertiva, pelo conceito em si. Independente das tatuagens as pessoas vão ter preconceitos contra mim (algumas vezes a meu favor). Mas preconceitos não me encapsulam, não me definem, nem a ninguém.
“Quando eu envelhecer ela vai deteriorar”. Assim como o resto do seu corpo, cara-pálida. Não há escapatória do tempo. É uma parte de você, de seu corpo. Vai se desgastar com o tempo, do mesmo modo que tudo mais.
“Não quero ser marcado como gado”. Se estivéssemos sob o regime nazista essa afirmação faria sentido, mas não conheço ações forçadas para a pessoa ser tatuada. Como há mais coisa nesse mundo do que as vezes se gostaria de imaginar, não vou dizer que não existe, mas o caso é que estamos tratando da liberdade de escolha.
“Minha religião proíbe”. Que pena... Com tantos dogmas as vezes nem é possível perguntar o porquê, mas é assim mesmo. Se isso for mesmo uma ofensa a Deus, então terei de pagar. Mas enquanto minha compreensão não mudar, não vou acreditar que alguém que tatue uma cruz, um anjo, estrelas e flores, ou uma instância qualquer do talento humano com o qual fomos tão piedosamente agraciados, vá afrontar o Todo-Poderoso. Se você acredita que vai, não faça... Exercite a sua crença. Dê aos outros o direito de exercitar as deles.
“É uma inflamação permanente”. Tem os médicos, enfermeiros e etc. que argumentam. Viver é uma batalha contínua contra as pragas que assolam a humanidade. Não deve ser mais perigoso do que andar de carro. As pessoas fumam... E o mais longe que vão viver é morrer dos efeitos do cigarro (pode ser que morram antes...). É um exercício de escolha. Quero ver um médico provar que tatuagem vai no final ser a causa da morte da criatura. Isso uma generalização, não achar uma meia dúzia de casos entre os milhões de tatuados na história da humanidade.
Há mais argumentos... Mas não acredito que nem cem contra-argumentos sejam capazes de mudar uma compreensão. Compreendo que há dor envolvida. Compreendo que nem sempre é feito sob as melhores influências. Compreendo que há riscos. E compreendo que a vida é cheia disso que pode ser definido pelas intenções, assim como é cheia do que pode ser definido pelos resultados.
Tem gente que vai fazer tatuagem por rebeldia. Tem gente que fez e ainda faz e continuará fazendo por questão de cultura e credo. É uma ferramenta, você escolhe a utilização. Uma tatuagem não é má, nem boa. Pode ser religiosa, ou pagã, e pode não ser nenhuma das duas. Pode ser a descrição de um caráter, ou um mero adorno.
Não há como escapar da dor. Talvez haja como escapar da dor da tatuagem... Um absurdo! Mas não há como escapar de outros tipos de dor. E a ligação da tatuagem, com essa coisa tão mundana, tão humana quanto a dor começa a definir o que há de belo nela.
Dor faz parte da natureza humana. Viver dói. Arrepender-se dói. Crescer dói. Outra coisa que faz parte da vida são as escolhas. Se a pessoa sabe que vai doer, sabe, mas mesmo assim faz ela está dando um passo na direção da superação da dor. Quantas pessoas tem medo da dor? As vezes ela é necessária. É uma parte do preço que se paga pelas escolhas. Se não doesse não teria sentido. Não teria valor.
Mas e pra mim o que é tatuagem? É difícil explicar... Se não doesse não teria sentindo. E não consigo explicar o sentido de ter de doer. Se não fosse para o resto da vida não valeria a pena. Mas não consigo descrever a justiça que há em se carregar outra pena perpétua além da própria vida. Concordo que pode ser um retrato de uma época da vida... E nem assim consigo explicar que beleza vejo nessa eterna cicatriz de um, ou de alguns, dos passos que fizeram você ser quem realmente é.
É um resultado artístico, conceitual, de escolha, para a dor do processo. É algo para a vida toda, assim como sua própria história, os filhos que você tiver, algumas escolhas que tomar. É algo que não vai lhe abandonar. É algo que pode ter passado, ou ser passado, mas faz parte daquilo que fez você ser a pessoa que se é. Pode ser algo que se arrependa, algo que se queria esconder. Não digo para ter orgulho dos erros do passado, alguns se deseja esconder... A vida é assim.
Talvez seja isso: por ser tão parecida com a vida. Por celebrar um momento dela. Por simplesmente ser bela. Por ser um produto da dor. Por ser um símbolo do seu caráter. Por todas as coisas. E por ser um simples adorno de tinta. Por não ser má, nem boa, mas ser fruto da escolha. Por ser perpétua, assim como a Sentença da Vida. Por tudo isso, e mais, acho simbolicamente linda. Mas além disso é simplesmente bela, como o que um artista põe sobre um pedaço de papel, dilapida de um bloco de mármore, impregna numa tela de linho e gesso.
Um belo símbolo, um valor artístico. E se mil palavras fossem ditas não resumiriam o sentido de uma única instância sob a pele de um único indivíduo. É claro que uma palavra refere a milhões de imagens. É claro que uma imagem é incapturável, até mesmo por milhares de palavras. E as vezes é isso: palavras e imagens. E sempre mais! São palavras, imagens e idéias num belo conjunto, resumindo e reunindo a beleza e a imensidão de cada um. Simplesmente inexplicavelmente belo, em diversos sentidos.

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